Como apoiar crianças autistas e superdotadas que têm dificuldades com mudanças e regras
- Gisele S. Corrêa
- 10 de nov.
- 8 min de leitura

Por que algumas crianças reagem tão mal a mudanças e regras
Muitos pais se surpreendem quando o filho entra em crise diante de algo que, para outros, parece simples — como trocar de roupa, mudar o caminho da escola ou aceitar uma nova regra de jogo.
Em casa, a resistência aparece como choros, discussões, insistência ou teimosia. Na escola, pode surgir como questionamentos constantes, necessidade de seguir tudo “ao pé da letra” ou irritação quando as normas mudam.
Essa rigidez costuma gerar dúvidas e culpas. Os pais se perguntam:
“Será que é autismo?” “Ou ele é só muito inteligente e quer tudo do jeito dele?”
A resposta, segundo a ciência, é complexa — e também tranquilizadora. Nem toda criança rígida é autista, e nem toda criança autista é inflexível por escolha. O comportamento é resultado de como o cérebro percebe, organiza e reage ao mundo.
Rigidez cognitiva: o que é e por que ela importa
O termo técnico para essa resistência mental é rigidez cognitiva. Ele se refere à dificuldade de mudar estratégias, pensamentos ou comportamentos diante de novas situações.
Em outras palavras, é o oposto da flexibilidade cognitiva, a capacidade de se adaptar, pensar “fora da caixa” e ajustar o raciocínio conforme o contexto.
Na prática, a rigidez aparece assim:
A criança quer que as coisas sejam feitas sempre da mesma forma;
Tem pouca tolerância a erros ou imprevistos;
Se irrita se alguém “muda as regras”;
Luta para entender exceções;
Fica ansiosa quando perde o controle da situação.
Mas a rigidez nem sempre é ruim. Em muitas crianças superdotadas, ela vem acompanhada de persistência, foco e alto senso de justiça. Já em crianças autistas, pode estar relacionada à necessidade de segurança e previsibilidade — uma forma de proteger-se de estímulos imprevisíveis.
O que a ciência mostra sobre autismo, superdotação e rigidez
Um estudo publicado por Riccioni e colaboradores (2021) comparou crianças autistas de alto funcionamento (HFA), crianças superdotadas (High Intellectual Potential – HIP) e crianças típicas para entender suas diferenças cognitivas, emocionais e neurológicas.
O resultado foi revelador:
Ambas as populações apresentavam rigidez de pensamento, mas por motivos diferentes.
As autistas mostraram dificuldades de adaptação e respostas cerebrais reduzidas a mudanças.
As superdotadas tinham grande perfeccionismo, foco intenso e dificuldade em aceitar regras que pareciam ilógicas.
Ambas demonstraram perfis cognitivos desiguais: altíssimo desempenho em algumas áreas (como raciocínio e linguagem) e lentidão em outras (como velocidade de processamento).
Essa combinação explica por que uma criança pode parecer “brilhante e teimosa” ao mesmo tempo — ou “muito inteligente, mas inflexível”.
Por que o cérebro reage assim: o que os estudos revelam
A pesquisa italiana utilizou medições cerebrais conhecidas como potenciais relacionados a eventos (ERPs), especialmente o MMN (mismatch negativity), que avalia como o cérebro responde a mudanças inesperadas em sons ou estímulos.
Em crianças autistas, a amplitude do MMN foi menor, indicando que o cérebro demora mais a perceber e processar novidades.
Nas superdotadas, a resposta foi semelhante à de crianças típicas, mas havia forte correlação entre rigidez, perfeccionismo e ansiedade.
Esses achados mostram que, enquanto o cérebro autista luta para lidar com o inesperado, o cérebro superdotado se incomoda com o que considera incoerente ou mal planejado.
Em outras palavras:
A criança autista teme a mudança em si.
A superdotada teme a falta de sentido da mudança.
Quando o problema é a mudança (autismo)
Para crianças autistas, o mundo pode ser cheio de surpresas difíceis de prever. Mudanças de rotina, sons novos, professores substitutos ou alterações nas regras do jogo podem provocar grande desconforto — não por birra, mas por sobrecarga sensorial e emocional.
Essas crianças sentem segurança em rotinas claras, porque o previsível lhes dá controle. Quando algo foge do esperado, o cérebro reage como se houvesse ameaça real.
Exemplo prático:
A professora muda as carteiras de lugar. A maioria das crianças acha diferente, mas segue o dia. A criança autista, porém, pode entrar em pânico, recusar-se a sentar ou chorar — não por desafio, mas porque aquele novo arranjo quebrou a estrutura mental que dava sentido ao ambiente.
Esse comportamento é um pedido de ajuda, não um ato de oposição.
Quando o problema é a regra (superdotação)
Crianças superdotadas também têm resistência, mas de natureza lógica e emocional. Elas possuem alto senso de coerência, o que as faz questionar regras que parecem “sem propósito”.
Exemplo:
A professora pede para usar lápis azul “porque sim”. A criança responde: “Mas o azul não muda o conteúdo. Por que não posso usar preto?”
O problema aqui não é aceitar a autoridade, mas compreender a razão. Para essas crianças, seguir uma regra sem lógica é como trair o próprio raciocínio.
Além disso, o perfeccionismo faz com que elas sintam grande desconforto diante de erros, injustiças ou contradições. Isso pode gerar conflitos com professores e colegas, mesmo quando há boa intenção de ambos os lados.
Semelhanças que confundem pais e professores
É fácil confundir as duas situações porque, na prática, as reações se parecem:
Situação | Criança Autista | Criança Superdotada |
A mudança da rotina gera crise | Ansiedade e confusão sensorial | Frustração com a falta de lógica |
Segue regras ao pé da letra | Precisa da estrutura | Quer coerência |
Questiona a autoridade | Por dificuldade social | Por senso de justiça |
Tem foco intenso | Em temas fixos | Em interesses amplos e profundos |
Mostra rigidez | Para manter previsibilidade | Para manter coerência |
Compreender essas diferenças evita rótulos equivocados e permite que cada criança receba o tipo de apoio mais adequado.
O papel do perfeccionismo e da ansiedade
Tanto em autistas quanto em superdotados, os pesquisadores encontraram altos índices de perfeccionismo e ansiedade.
Esse perfeccionismo pode se manifestar de formas distintas:
A criança autista quer repetir algo exatamente igual para sentir que “deu certo”;
A criança superdotada quer que tudo saia perfeito para provar a si mesma que é capaz.
Ambas sofrem diante do erro. Quando as expectativas são muito altas (da escola, dos pais ou delas próprias), a rigidez aumenta como mecanismo de defesa.
Por isso, em casa e na escola, é essencial valorizar o processo, não apenas o resultado. Celebrar o esforço ajuda a reduzir a ansiedade e a ampliar a tolerância à frustração.
O impacto emocional da rigidez
A rigidez constante pode trazer consequências profundas:
Crises de ansiedade e insônia;
Evitação de novos desafios;
Isolamento social;
Queda de autoestima;
Conflitos familiares e escolares.
Crianças muito rígidas se cobram demais. Elas acreditam que precisam ser perfeitas para merecer aprovação — e isso gera sofrimento.
O apoio emocional deve vir antes da correção comportamental. Em vez de forçar a mudança, o ideal é criar um ambiente seguro para que a flexibilidade surja naturalmente.
10. Estratégias práticas para pais e educadores
Abaixo estão estratégias validadas por estudos clínicos e pela prática terapêutica para lidar com rigidez e resistência em crianças autistas e superdotadas.
1. Antecipe as mudanças
Avise com antecedência sobre alterações de rotina:
“Amanhã vamos ao médico em vez da escola, mas depois voltamos à rotina normal.”
Mostre visualmente com calendários, cartazes ou aplicativos. A previsibilidade reduz a ansiedade tanto em autistas quanto em superdotados.
2. Explique o motivo das regras
Evite “porque sim”. Explique o porquê de cada decisão, com lógica e empatia:
“Usamos azul porque todos na escola precisam seguir o mesmo padrão — assim fica mais fácil corrigir os trabalhos.”
Mesmo que a criança discorde, entender a lógica diminui a sensação de arbitrariedade.
3. Trabalhe a flexibilidade com pequenas variações
Comece com mudanças sutis: mude a ordem do jantar uma vez por semana, ou altere o caminho até a escola. Depois, converse sobre o que sentiram.
Essas microexposições ajudam o cérebro a se adaptar sem trauma.
4. Ofereça escolhas controladas
A flexibilidade cresce quando a criança sente participação no processo. Diga:
“Você prefere começar pela lição de português ou de matemática?”
Assim, ela aprende que mudar não significa perder o controle.
5. Valorize o esforço, não o acerto
Elogie tentativas, não apenas resultados:
“Gostei de como você tentou fazer diferente hoje.”
Isso reduz o medo de errar e ensina que flexibilidade é sinal de coragem.
6. Crie parcerias com a escola
Professores precisam entender que o comportamento rígido não é desafio, é sintoma. Compartilhe observações e estratégias que funcionam em casa. Peça à escola que mantenha rotinas previsíveis, mas também oportunidades de variação segura.
7. Promova o autoconhecimento
Converse sobre emoções e diferenças de funcionamento:
“Percebo que você se sente desconfortável quando algo muda. Todo mundo tem pontos fortes e desafios. Vamos pensar em estratégias juntos?”
Isso ensina a criança a reconhecer e comunicar suas necessidades — habilidade fundamental para a vida.
11. Como apoiar o desenvolvimento social
Crianças rígidas, sejam autistas ou superdotadas, podem ter dificuldades de socialização. Algumas se isolam por não entender códigos sociais; outras por não se identificarem com os colegas.
Estratégias úteis incluem:
Grupos de interesse (robótica, leitura, arte, ciências);
Mentoria entre pares, com colegas mais empáticos;
Jogos cooperativos, que exigem negociação e troca de papéis;
Exercícios de empatia, como discutir diferentes pontos de vista em histórias.
Essas vivências ajudam a ampliar o olhar sobre o outro e a reduzir a rigidez nas interações.
O papel da avaliação profissional
Para compreender se a rigidez está relacionada ao autismo, à superdotação ou a ambos, é necessário avaliação especializada. Para saber mais sobre a importância da identificação da superdotação em qualquer idade clique aqui.
Essa avaliação geralmente inclui:
Testes cognitivos padronizados;
Escalas adaptativas e comportamentais;
Observações clínicas;
Entrevistas com diferentes fontes de informação.
Com essas informações, o profissional consegue construir um perfil global da criança, orientando intervenções adequadas — tanto na escola quanto em casa.
13. Quando buscar ajuda
Pais devem procurar apoio quando:
A resistência causa sofrimento intenso (crises, isolamento, choro frequente);
A criança demonstra medo de errar ou rejeita desafios;
Há impacto escolar (recusa a regras, dificuldade de convivência);
Os adultos estão esgotados ou sem estratégias.
O acompanhamento pode envolver psicólogos, terapeutas ocupacionais, neuropsicólogos e psiquiatras infantis — preferencialmente com experiência em neurodiversidade e altas habilidades.
14. O que pais podem fazer por si mesmos
A rigidez da criança muitas vezes exige flexibilidade dos adultos. É importante que pais e cuidadores:
Busquem apoio emocional próprio;
Evitem culpa — a rigidez não é resultado de má criação;
Revezem responsabilidades;
Informem-se sobre autismo e superdotação para compreender as necessidades reais.
Pais tranquilos ajudam filhos a se regularem melhor.
15. O caminho da aceitação
Ajudar uma criança a lidar com mudanças e regras é um processo de aceitação mútua. Não se trata de “consertar” comportamentos, mas de ensinar estratégias para viver com menos sofrimento.
A rigidez pode ser transformada em:
Disciplina, quando canalizada para metas pessoais;
Persistência, quando aliada à empatia;
Criatividade estruturada, quando a criança aprende a “regrar a própria invenção”.
A chave é o equilíbrio: manter a segurança interna, sem bloquear o aprendizado e a convivência.
Conclusão: entre o controle e a confiança
Crianças autistas e superdotadas não resistem por teimosia. Elas resistem porque o mundo, às vezes, parece imprevisível, injusto ou sem lógica.
Ao entender suas necessidades — previsibilidade, coerência, respeito ao ritmo —, pais e professores podem transformar crises em oportunidades de crescimento.
Ajudar uma criança rígida é, acima de tudo, ensinar-lhe a confiar: no ambiente, nas pessoas e em si mesma.
Com apoio adequado, cada uma delas pode desenvolver não apenas flexibilidade, mas também autonomia emocional, pensamento crítico e sensibilidade social — virtudes que nascem justamente daquilo que um dia pareceu ser o maior desafio.
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Referência
Riccioni, A. et al. (2021). High Intellectual Potential and High Functioning Autism: Clinical and Neurophysiological Features in a Pediatric Sample. Brain Sciences, 11(12), 1607. https://doi.org/10.3390/brainsci11121607
Como apoiar crianças autistas e superdotadas que têm dificuldades com mudanças e regras



